Nos dois primeiros artigos, expusemos o paradoxo de um país armado e o elo metafísico entre a corrupção do colarinho branco e a violência das ruas. Agora, precisamos encarar o fenômeno mais perturbador da segurança pública nacional: a fidelidade canina do jovem ao crime organizado.
Qualquer policial que patrulha as zonas de conflito conhece este perfil. O "soldado" do tráfico, muitas vezes um adolescente, demonstra uma disciplina, uma hierarquia e uma disposição para o sacrifício (até a morte) que causariam inveja a muitos exércitos regulares.
Rondônia, mesmo distante dos grandes centros, assistiu recentemente uma onda de crimes de ameaças a provedores de internet, em diversos municípios, chegando ao ponto de algumas lojas serem incendiadas. Os “infratores”, em sua maioria menores, foram presos, estavam cegamente sob a obediência de alguém que eles nunca viram, porém, estavam dispostos a arcar com todas as consequências de seus atos, por “honra”, por “lealdade” pelo sentimento de “pertencimento.
A pergunta que a sociedade se recusa a fazer é: onde ele aprendeu isso?
Certamente não foi na escola pública que ele abandonou, onde a autoridade do professor é inexistente e o ensino é um amontoado de fragmentos desconexos. A resposta é dura, mas necessária: o crime organizado cresce não apenas pela oferta de dinheiro, mas porque ele preenche o vácuo existencial deixado por uma educação que aboliu o sentido da vida.
O jovem, fruto de uma desconstrução filosófica, moral e cultural, simplesmente não consegue encontrar uma razão para sua existência dentro da realidade que lhe é apresentada, onde tudo é relativo: a verdade, a beleza, a moralidade, a sexualidade. E ele, é apenas um conglomerado de átomos, capaz de raciocinar e tomar decisões de acordo com aquilo que mais lhe proporcione satisfação e prazer.
O Horror ao Vácuo Espiritual: A Lição de Frankl
A natureza, ensinavam os antigos físicos, tem horror ao vácuo (horror vacui). Se você esvazia um recipiente de ar, algo deve preencher aquele espaço, ou ele implodirá. A alma humana obedece à mesma lei.
A educação clássica e a escolástica sabiam que o jovem tem uma sede natural de Ordem, Sentido e Pertencimento. A função da Paideia era preencher a alma com o amor à Verdade, a disciplina das Virtudes e a consciência de um destino transcendente (Deus). O jovem aprendia quem era, qual o seu lugar no cosmos e qual o seu dever para com a comunidade.
A educação moderna, sob o pretexto de "laicidade" ou "pensamento crítico", arrancou da sala de aula as grandes questões sobre Deus, a Moral Objetiva e o Destino Humano. O resultado foi a criação de uma geração niilista, onde “tudo é relativo” e “você constrói suas próprias verdades”.
O psiquiatra austríaco Viktor Frankl, sobrevivente de quatro campos de concentração nazistas e fundador da Logoterapia, diagnosticou com precisão cirúrgica este mal do século. Em sua obra Em Busca de Sentido, Frankl argumenta que a motivação primária do homem não é o prazer (Freud) ou o poder (Adler), mas a Vontade de Sentido.
Escreve Frankl: "Cada vez mais pessoas têm hoje os meios para viver, mas nenhum sentido pelo qual viver."
Quando a escola falha em apresentar esse "sentido pelo qual viver", ela cria o que Frankl chamou de Vácuo Existencial. E, segundo o psiquiatra, quando a vontade de sentido é frustrada, o vácuo é preenchido rapidamente pela "vontade de poder" ou pela busca desenfreada de prazer. O jovem recruta do tráfico é a personificação trágica da tese de Frankl: um menino com a alma vazia, buscando desesperadamente poder (a arma na cintura) para sentir que existe.
O Crime como "Anti-Escola": A Visão de Dalrymple
É neste momento de fragilidade extrema que o crime organizado se apresenta não apenas como um empregador, mas como um educador substituto. As grandes facções brasileiras entenderam, instintivamente, o que o Ministério da Educação esqueceu: o ser humano precisa de Ritos, Dogmas e Hierarquia.
O médico e psiquiatra britânico Theodore Dalrymple, que dedicou sua carreira a atender presidiários e habitantes de áreas degradadas, expõe em A Vida na Sarjeta que a violência moderna não é fruto apenas da pobreza material, mas de uma profunda pobreza espiritual e cultural.
Dalrymple observa que, para o jovem imerso no que ele chama de "subclasse", a violência torna-se uma forma de linguagem e identidade. O crime oferece uma estrutura perversa, mas funcional:
- Disciplina: Onde a escola moderna é permissiva, a facção impõe o rigoroso "proceder". Há regras rígidas de conduta, tribunais internos e punições severas para quem mente ou trai. O jovem encontra ali a Ordem que a pedagogia permissiva lhe negou.
- Pertencimento: Onde a escola retirou o sentido de comunidade (substituindo-o pelo individualismo da carreira), a facção oferece a "Irmandade". "Somos o CV", "Somos o PCC". O jovem ganha uma identidade coletiva, uma "família", ainda que perversa.
- Liderança: Onde a escola retirou a autoridade do Mestre (transformando-o em "facilitador"), a facção apresenta a autoridade absoluta do "Dono do Morro" ou do "Geral". A alma humana, que foi feita para obedecer ao que é superior, na falta de um Deus ou de um Mestre legítimo, curva-se diante de um Tirano.
Dalrymple alerta que a barbárie avança quando a civilização recua. O crime organizado é a barbárie organizada preenchendo o espaço deixado pelo recuo da Alta Cultura e da Moralidade na formação dos jovens.
O crime oferece uma paródia demoníaca da educação integral. Ele forma a "vontade" (para o mal), treina o "intelecto" (para a logística do crime) e dá um "espírito" de corpo (a lealdade à facção).
A Perda da Teleologia: Aristóteles e Weaver
O conceito chave que perdemos é a Teleologia (do grego telos, fim/propósito). Aristóteles, em sua Ética a Nicômaco, ensinava que toda ação humana visa um bem e que a educação deve conduzir o homem ao seu fim último: a Eudaimonia (felicidade baseada na vida virtuosa). Para o estagirita, não há educação sem um "Alvo".
A escola moderna, contudo, aboliu o Fim. Ela foca nos Meios (passar no vestibular, arrumar emprego, alcançar o primeiro milhão). Mas "meios" não satisfazem o coração humano. Ninguém dá a vida por uma nota no ENEM.
Richard M. Weaver, o grande filósofo conservador americano, em sua obra As Ideias Têm Consequências, descreve o homem moderno como alguém que perdeu o "sonho metafísico" — a crença em uma verdade superior que organiza a vida. Sem essa verdade, diz Weaver, o homem se torna uma "massa" desorientada, incapaz de autogoverno.
Weaver sentencia: "A dissolução do Ocidente começou quando o homem disse que não há verdade transcendental."
Sem a Verdade transcendental, o jovem não tem motivo para ser honesto se a desonestidade lhe trouxer lucro. Sem a Teleologia, ele não tem motivo para preservar a vida (sua ou a do outro) se a morte lhe trouxer glória imediata na facção.
O crime oferece um Telos falsificado, mas palpável: o Poder, o Respeito, a Conquista do Território. É um propósito baixo, vil e destrutivo, mas é um propósito. Para um jovem que está se afogando no oceano do sem-sentido, qualquer tábua de salvação serve, mesmo que seja uma tábua podre.
Conclusão: A Culpa é da Omissão
Enquanto a educação brasileira continuar tratando o aluno como um cérebro que precisa armazenar dados para o ENEM, e não como uma alma que precisa de ordenação moral, continuaremos perdendo a guerra.
O recrutamento do tráfico não acontece apenas porque o jovem quer um tênis de marca. Acontece porque, como ensinou Frankl, o ser humano não suporta o vazio. A escola moderna disse ao jovem que ele é um acidente cósmico. O crime lhe diz: "Aqui você é um soldado".
A "Síndrome do Vazio" é a doença. A criminalidade é apenas a infecção oportunista, que tomou conta do corpo imunodeprimido. Para desarmar o crime, precisamos, antes de tudo, rearmar a alma do estudante com a Verdade que preenche e a Virtude que liberta, resgatando a sabedoria que Aristóteles e a Escolástica nos legaram e que nós, arrogantemente, jogamos fora.
Referências
- ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução de Edson Bini. 4. ed. São Paulo: Edipro, 2014.
- DALRYMPLE, Theodore. A Vida na Sarjeta: o círculo vicioso da miséria moral. Tradução de Maurício G. Righi. São Paulo: É Realizações, 2014.
- FRANKL, Viktor E. Em Busca de Sentido: um psicólogo no campo de concentração. Tradução de Walter O. Schlupp e Carlos C. Aveline. 32. ed. São Leopoldo: Sinodal; Petrópolis: Vozes, 2011.
- WEAVER, Richard M. As Ideias Têm Consequências. Tradução de Guilherme Ferreira Araújo. 4. ed. São Paulo: É Realizações, 2012.
- SERTILLANGES, Antonin-Dalmace.A Vida Intelectual: seu espírito, suas condições, seus métodos. Tradução de Lúcia Miguel Pereira. 4. ed. São Paulo: É Realizações, 2010.
Clodomar Rodrigues Coronel da Policia Militar do Estado de Rondonia
Comandante Regional de Policiamento II